quinta-feira, 26 de setembro de 2013

STJ anula decisão contra fazenda pública e pede investigação sobre atuação de autoridades do Amapá

           Com essa decisão do Superior Tribunal de Justiça, que anulou Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, ficou claro que as Justiças estaduais estão cometendo muitos deslizes, necessitando de ajustes para que não frustrem as expectativas dos cidadãos que vivem momentos de angústia e descrédito com as Instituições do País, dentre as quais se encontra o Poder Judiciário. O povo ainda deposita muitas esperanças na Justiça. Se esta, por sua vez, não corresponde às expectativas da sociedade, poderemos ter momentos trágicos, com desfechos imprevisíveis.

           Portanto, se queremos preservar a democracia conquistada a duras penas, resta-nos lutar para que as nossas instituições não só sejam preservadas, mas também fortalecidas. Como prova de que a nossa Justiça precisa melhorar, vejamos o que noticiou o STJ sobre decisão proferida em Recurso Especial interposto de decisão do Tribunal de Justiça do Amapá contra a fazenda pública estadual.

            "Devido a uma série de “atrocidades processuais”, como definiu o ministro Herman Benjamin, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou decisão do Tribunal de Justiça do Amapá (TJAP) proferida contra o estado, que tenta evitar o pagamento de quase R$ 14 milhões à empresa Setra – Segurança e Transporte de Valores Ltda. O TJAP extinguiu ação rescisória movida pelos procuradores do estado depois de homologar um acordo duvidoso. A dívida cairia de cerca de R$ 14 milhões para R$ 8,7 milhões, pagos em 11 parcelas mensais diretamente na conta do advogado da empresa (declarada inapta com base na legislação tributária), sem a expedição de precatório judicial – o que contraria a Constituição Federal.

           Além de anular o acórdão e exigir novo julgamento da ação rescisória no TJAP, a Turma determinou a remessa de cópia do processo ao Conselho Nacional de Justiça, ao Ministério Público Federal, à corregedoria da Procuradoria-Geral do Amapá e ao governador, para apuração de irregularidades disciplinares, atos de improbidade e até mesmo crimes que possam ter sido cometidos por autoridades locais, entre elas um desembargador, hoje vice-presidente do TJAP, e uma ex-procuradora-geral do estado. Relator do caso, o ministro Herman Benjamin disse que o processo 'denota sérios erros de julgamento que deixaram passar em livre trânsito um sem-número de gritantes vulnerações ao ordenamento jurídico e às mais comezinhas normas e princípios regentes da administração pública'.

           Segundo ele, a “complacência” do TJAP e da Procuradoria-Geral do estado diante de tantos erros, capazes de gerar grave lesão ao erário amapaense, “recomenda sejam apuradas eventuais irregularidades ou desvios funcionais na atuação de seus membros”. Assinatura falsa O caso chegou ao STJ por meio de recurso especial em ação rescisória proposta pelo estado do Amapá. O objetivo da ação é desconstituir o julgamento de processo que condenou o estado a pagar R$ 13,8 milhões à Setra, em valores atualizados.

           Para isso, os procuradores estaduais apontaram inúmeras violações legais naquela decisão e ainda o fato de que a condenação do estado teria sido amparada em documento fraudulento, no qual constava assinatura falsa do governador. Eles apresentaram laudo da polícia técnica atestando a falsidade da assinatura. Apesar de tudo isso, o TJAP julgou a rescisória prejudicada, sem analisar o mérito das alegações. Essa decisão fundamentou-se exclusivamente em informação prestada de forma unilateral pela Setra, de que as partes haviam chegado a acordo extrajudicial.

           A formalização desse acordo foi feita em 2010 por ordem do então presidente do TJAP, desembargador Dôglas Evangelista Ramos, que exercia interinamente o cargo de governador do Amapá porque o governador titular, Pedro Paulo Dias, estava preso em razão das investigações da Operação Mãos Limpas, da Polícia Federal. Dôglas Evangelista (atual vice-presidente do tribunal) havia participado anteriormente dos julgamentos da apelação e dos embargos infringentes que deram origem à dívida em discussão. Mesmo em meio a essas peculiaridades, o acordo foi homologado pelo TJPA. Novo julgamento O recurso submetido ao STJ é contra o julgamento da ação rescisória, tida pelo TJAP como prejudicada.

          O ministro Herman Benjamin considerou que a ação foi precocemente extinta sem a investigação necessária para elucidar as gravíssimas alegações quanto à falsificação da assinatura do ex-governador Annibal Barcellos. Para o relator, ainda que a tese da falsidade tenha sido embasada em laudo oficial da polícia técnica do estado, que tem presunção de veracidade, o caso deve ser analisado no âmbito da ação rescisória pelo TJAP, para permitir o contraditório. 'Uma vez comprovada a falsidade dos documentos que serviram à condenação, seguramente outro será o resultado a que se chegará no rejulgamento da ação de cobrança', explicou Benjamin. Seguindo a posição do relator, a Turma entendeu que a ação rescisória não deveria ser julgada diretamente pelo STJ, para preservar os princípios do duplo grau de jurisdição e do devido processo legal.

           Contudo, o colegiado deu parcial provimento ao recurso do estado do Amapá para anular o acórdão estadual e determinar o retorno do processo ao TJAP, para que haja regular processamento e julgamento da ação rescisória. Açodamento Ao analisar o pedido de anulação do acórdão proferido pelo TJAP, Herman Benjamin observou que 'o açodamento com que a corte estadual homologou o acordo e determinou a extinção da ação rescisória por perda de objeto importou em flagrante nulidade por vício extra petita'. Ou seja, ao extinguir a rescisória, sem nem mesmo ouvir o estado, o TJAP concedeu o que não havia sido pedido na ação, apenas aceitando a informação prestada unilateralmente pela Setra, sem a assinatura da Procuradoria-Geral do Amapá.

           Para o relator, não se pode inferir da mera realização de acordo a presunção absoluta de concordância do estado com a extinção da ação rescisória. Tanto que, pouco depois de firmado o acerto extrajudicial, o governo do estado, no legítimo exercício do poder de autotutela, editou decreto que o anulou. Além disso, o próprio acordo previa suspensão, e não a extinção do processo, até o cumprimento final da transação. 'Diante dessa convenção firmada entre os transigentes, cumpria ao tribunal de justiça pelo menos estranhar o requerimento de extinção, ardilosa e maliciosamente formulado pela empresa Setra, em clara afronta à cláusula do acordo por ela mesma firmado', disse o ministro, para quem houve cerceamento do direito de defesa do estado. Acordo ilegal Para Herman Benjamin, o julgamento realizado pelo TJAP traz uma série de 'aberrações jurídicas'. Segundo ele, o acordo é manifestamente ilegal, pois atropelou o indispensável instrumento do precatório, necessário mesmo em crédito de natureza alimentar.

           O relator destacou que todas essas questões foram apontadas no julgamento em voto divergente do desembargador Edinardo Souza, que não homologou o acordo e votou pelo prosseguimento da ação. Benjamin afirmou que, nos termos do artigo 129 do Código de Processo Civil, o juiz não pode homologar acordo de licitude duvidosa e que viola os princípios gerais do ordenamento jurídico. Além disso, é ilegal e insuscetível de homologação judicial a transação entre a administração pública e o particular que viola a sequência dos precatórios, mesmo se o credor renunciar a parte do crédito. 'As atrocidades processuais não param por aí', disse o ministro no voto. Também chamou sua atenção o fato de que o acordo não aponta a origem dos recursos que seriam utilizados para pagar as prestações mensais – uma clara violação ao artigo 167 da Constituição, regra que condiciona toda despesa pública a uma receita. Outra ilegalidade reside no fato de que a Setra estaria inapta segundo a Lei 11.941/09, de forma que ela não pode nem mesmo movimentar uma conta corrente.

          Por essa razão, o acordo prevê os depósitos em conta do advogado da empresa. Com todas essas considerações, a Turma seguiu o voto do relator para reconhecer a nulidade do acórdão proferido pelo TJAP. Atuação de autoridades 'Causa absoluta estupefação observar que a realização da avença fora autorizada pelo governador em exercício, o desembargador Dôglas Evangelista Ramos, o que empresta maior gravidade aos fatos', disse Benjamin. Isso porque, além de o magistrado de segundo grau ter mais condições técnico-jurídicas que o próprio governador para identificar a lesividade do acordo, ele participou do julgamento da apelação e de embargos infringentes na ação ordinária de cobrança ajuizada pela Setra.

          O ministro destacou ainda que o parecer consultivo que levou ao acordo foi elaborado pela então procuradora-geral do estado, Luciana Marialves de Melo, a mesma que depois assinou o termo da avença manifestamente inconstitucional, segundo ele. 'O parecer consultivo, pasmem, foi aprovado por ninguém menos que o governador em exercício, o desembargador Dôglas Evangelista Ramos', apontou Benjamin.

           Para o relator, a conduta do agente público que autorizou despesa lesiva ao patrimônio público sujeita-se a apuração de responsabilidade, conforme preveem a Constituição e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Diante dessas constatações, a Turma resolveu acionar órgãos de controle, com o envio da decisão e de todo o processo. Ao Conselho Nacional de Justiça cabe verificar eventual falta de correção no cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados. Ao Ministério Público Federal compete averiguar a ocorrência de infração à legislação penal ou à Lei de Improbidade Administrativa. Já a corregedoria da Procuradoria-Geral do Amapá deve identificar eventuais desvios funcionais e disciplinares de seus membros."