Ninguém desconhece que o
Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem reforçando o papel das astreintes no sistema jurídico brasileiro.
A jurisprudência mais recente do Tribunal tem dado relevo ao instituto, que
serve para coibir o adiamento indefinido do cumprimento de obrigação imposta
pelo Poder Judiciário. As astreintes
são multas diárias aplicadas à parte que deixa de atender decisão judicial.
A questão que se discute no presente
não se refere à legalidade da estipulação da multa diária, que de conformidade com
o art. 461 do CPC, “Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de
fazer, o Juiz concederá a tutela específica da obrigação de fazer ou, se
procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático
equivalente ao do adimplemento. E isso, em determinadas circunstâncias, tão
somente é possível viabilizar mediante a estipulação de multa diária, nos exatos
termos do §4º deste artigo, que afirma:
§4º.
O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa
diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou
compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do
preceito.
Vê-se que a estipulação da multa
diária tem previsão legal de caráter pedagógico. Segundo o STJ, “se o único
obstáculo ao cumprimento da decisão judicial é a resistência ou descaso da
parte condenada, o valor acumulado da multa não deve ser reduzido. Por esse
entendimento, a análise sobre o excesso ou adequação da multa não deve ser
feita na perspectiva de quem olha para os fatos já consolidados no tempo,
depois de finalmente cumprida a obrigação. Não se pode buscar razoabilidade
quando a origem do problema está no comportamento desarrazoado de uma das
partes, afirmam os votos orientadores.”
O que se questiona, no entanto, diz respeito ao
amparo legal para que um Magistrado determine o bloqueio de recursos de contas da
Fazenda pública, de montante elevadíssimo, no caso R$ 3.110.000,00 (três milhões,
cento e dez mil reais), antes mesmo da prolação da sentença definitiva. Em assim
sendo, essa decisão apresenta vícios de ilicitude e fere princípios
constitucionais. Se não houve o trânsito em julgado, e sequer há sentença
definitiva nos autos do processo, tal decisão é injustificável. Mesmo considerando
a existência de uma sentença definitiva e com trânsito em julgado, não é possível
proceder-se a execução da Fazenda Pública por esse viés, tendo em vista que esta se realiza
com base no art. 730 do CPC, que define que “Na execução por quantia certa
contra a Fazenda Pública, citar-se-á a devedora para opor embargos em 30
(trinta) dias; se esta não os opuser, no prazo legal, observar-se-ão as
seguintes regras:
I –
o juiz requisitará o pagamento por intermédio do presidente do tribunal
competente;
II –
far-se-á o pagamento na ordem de apresentação do precatório e à conta do
respectivo crédito.
Registre-se que tão somente há
exceção da regra do inciso II nos casos das requisições de pequenos valores,
que no Estado do Amapá estão fixadas em 10 (dez) salários mínimos. Fora desse
parâmetro, todos os demais pagamentos sujeitar-se-ão à expedição de precatórios
por força do que dispõe o art. 100 da Constituição Federal. Senão vejamos:
Art.
100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais,
Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão
exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta
dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas
dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
Pelo exposto, constata-se a ausência
de amparo legal para a decisão de 21 de fevereiro de 2014, que determina “Nos
termos da Portaria nº 001/2009, .... intime-se a parte ré/Estado do Amapá
para, no prazo de 15 dias, manifestar-se sobre o bloqueio ‘on line’ BacenJud,
de R$ 3.110.000,00 (três milhões e cento e dez mil reais).”
Decisões controversas dessa natureza levaram o STF,
acertadamente, a reconhecer em processo a repercussão geral, a fim de discutir
os limites das decisões judiciais sobre políticas públicas de saúde.
A definição a ser dada pelo Supremo Tribunal
Federal será muito oportuna. É bem verdade que todos os cidadãos, de acordo com
o artigo 196 da Constituição Federal, têm direito à Saúde Pública de qualidade.
No entanto, não é razoável a interferência exacerbada do Poder Judiciário, que
em decisões individuais privilegia alguns em detrimento da coletividade.
As relações de autonomia e independência entre os Poderes
têm sofrido abalos em razão da extrapolação dos limites da competência de cada um.
O que se vê hoje é a interferência do Judiciário nas ações próprias do
Executivo, tais como: a construção de hospitais, contratação de pessoal, compras
de equipamentos e medicamentos, realização de cirurgia, transporte de pacientes
para tratamento fora do domicílio, etc. Não raras vezes, o bloqueio de dinheiro
das contas dos entes federados, sem o devido conhecimento da destinação dos recursos
confiscados, compromete, quase sempre, os fins para os quais foram destinados.
A manifestação do Supremo Tribunal Federal quanto à
matéria é primordial para evitar equívocos e questionamentos a respeito. Eis a seguir
a notícia veiculada na data de 21 de fevereiro de 2014 no site do STF:
“O Poder
Judiciário pode obrigar o Poder Executivo a implementar políticas de saúde em
benefício da população ou isso é uma interferência de um Poder republicano
sobre outro? A controvérsia será debatida pelo Supremo Tribunal Federal (STF)
no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 684612. O recurso foi interposto
pelo Município do Rio de Janeiro contra o Ministério Público estadual, que
ajuizou ação civil pública para obrigar a prefeitura a tomar providências
administrativas para o funcionamento do Hospital Municipal Salgado Filho,
localizado no bairro do Méier, na capital carioca.
Por meio
de deliberação no Plenário Virtual do STF, os ministros, por maioria,
consideraram que a matéria transcende o interesse das partes envolvidas e
reconheceram a existência de repercussão geral do tema, que discute,
especificamente, os limites do Poder Judiciário para determinar obrigações
de fazer ao Estado, consistentes na realização de concursos públicos,
contratação de servidores e execução de obras que atendam ao direito social da
saúde, previsto na Constituição.
No
recurso, o MP-RJ alega estar previsto no artigo 129 da Constituição Federal sua
atribuição em cobrar do Estado que promova condições de acesso do cidadão à
saúde. Com base nisso, o Ministério Público apresentou a ação civil pública a
partir de relatório do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de
Janeiro (Cremerj) sobre as condições da estrutura e do atendimento no Hospital
Municipal Salgado Filho.
Entre os
pedidos formulados na ação, o MP-RJ requereu que a Prefeitura do Rio fosse
obrigada a realizar concurso para contratar 79 médicos de várias
especialidades, 3 dentistas, 89 enfermeiros e 112 técnicos e auxiliares de
enfermagem, sob pena de multa diária no valor de R$ 5 mil, e que corrigisse as
irregularidades expostas no relatório do Cremerj. O juízo de primeira instância
julgou improcedente os pedidos, mas o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
(TJ-RJ), ao julgar apelação interposta pelo MP, reformou decisão.
No STF, a
Prefeitura sustenta que é um equívoco a decisão do TJ-RJ no sentido de que o
Poder Judiciário pode obrigar o Executivo à observância do direito fundamental
à saúde. Sustenta ainda que a Corte fluminense permitiu que o Ministério
Público estadual invadisse a seara de atos discricionários que ensejam a
contratação de pessoal, bens e serviços pela administração pública municipal,
“ao arrepio da competência que o artigo 84, inciso 11, da Constituição da
República, confere ao chefe do Poder Executivo para o exercício da direção
superior da administração, bem como da indispensável autorização orçamentária”.
Manifestação:
Em
manifestação pelo reconhecimento de repercussão geral da matéria, a relatora do
RE, ministra Cármen Lúcia, afirmou que ‘a discussão sobre os limites do
princípio da independência entre Poderes, quanto à adoção de providências
relativas a políticas públicas para implementação de direitos e garantias
previstos na Constituição da República, tem sido submetida, de forma reiterada,
à análise deste Supremo Tribunal Federal’.
Ela
acrescentou que a matéria assemelha-se ao objeto de outros recursos
extraordinários pendentes de julgamento de mérito, cuja repercussão geral foi
reconhecida pelo Plenário Virtual do STF.
Ela
destacou que está presente no caso a relevância jurídica e social da matéria,
além da transcendência da questão, uma vez que, ‘no Estado brasileiro, a
inexistência de condições satisfatórias na prestação do serviço de saúde,
notadamente para as camadas sociais menos favorecidas, não é peculiaridade
deste caso, o que torna a controvérsia recorrente nos tribunais do país’.”
É bem verdade que a saúde pública no
Brasil é preocupante, precisando melhorar muito, e urgentemente. E isso é fato.
É real. Ninguém desconhece. E muito precisa ser realizado para que o cidadão
que depende do atendimento da rede pública de saúde seja atendido com presteza
e dignidade. No entanto, com esse tipo de artifício, estipulando multas
elevadas, para depois bloquear as contas do ente público não resolve a deficiência.
Com esse procedimento, além de onerar demasiadamente a Fazenda Pública, alguns
são favorecidos em detrimento da sociedade, que não tem acesso a advogados, e muito
menos à Justiça. O serviço público de saúde precisa ser melhorado, sim, mas em
proveito de todos, sem exceção.
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